quinta-feira, 10 de março de 2011

A BUSCA PELO DESENVOLVIMENTO DO BRASILEIRO

COMBATE À POBREZA
Como conquistar o desenvolvimento social
Segundo critérios do Banco Interamericano de Desenvolvimento, nossa linha de pobreza foi fixada em R$ 120. E o mais grave é a implicação de que as políticas universais – que beneficiam os “não pobres” – devem ser destruídas e seus recursos realocados para os “pobres”. O real objetivo dessa agenda é o ajuste fiscal
A Constituição de 1988 consagrou as bases da proteção social inspirada no Estado de Bem-estar Social. Um feito notável por contrariar os interesses das elites e caminhar na contramão do neoliberalismo. Todavia, a partir de 1990, o Brasil optou por essa rota e a política social esteve submetida às tensões entre dois paradigmas antagônicos: o Estado Mínimo versus o Estado de Bem-estar Social. No primeiro, bastam políticas “focalizadas” nos “mais pobres” para enfrentar a questão social. O segundo é orientado pelos princípios da seguridade, universalidade e cidadania. Essa tensão arrefeceu a partir de 2006, quando a questão do crescimento econômico foi reincorporada na agenda. A crise do neoliberalismo (2007) também contribuiu para isso.
A nova presidenta tem uma oportunidade de ouro: superar essa etapa de tensões e avançar na consolidação de uma nova estratégia de desenvolvimento social, baseada no desenvolvimento econômico com estabilidade, distribuição da renda e convergência entre as ações universais e as focalizadas.
Este artigo tem dois objetivos. O primeiro é apresentar uma síntese da trajetória recente da política social. O segundo é salientar os núcleos da nova estratégia de desenvolvimento social.
 A trajetória recente da política social
Nos últimos 50 anos é possível identificar dois movimentos na trajetória da política social (Fagnani, 2005). O primeiro aponta o rumo da estruturação de políticas inspiradas no Estado de Bem-estar. Esse processo ganhou impulso na luta pela redemocratização e desaguou na Constituição de 1988. O outro aponta no sentido contrário: desestruturação dessas conquistas, iniciada a partir de 1990.
Conquistas na contramão do mundo
As últimas três décadas marcam a hegemonia do neoliberalismo. Os direitos sociais estiveram tensionados por reformas visando o seu retrocesso. O Brasil seguiu rota inversa. De meados da década de 1970 até 1988, caminhamos na contramão do mundo. Fomos salvos pelo momento político. Os movimentos sociais que lutavam pela redemocratização queriam acertar as contas com a ditadura. Não havia brechas para a agenda liberal.  Após árdua marcha, a nova Carta restabeleceu a democracia e desenhou o embrião de um novo projeto inspirado no Welfare State. Seu âmago reside nos princípios da universalidade (em contraposição à focalização), da seguridade (seguro) e dos direitos sociais (assistencialismo).
Dentre as inovações, destaca-se a criação da política de Seguridade Social, integrada pelos setores da Previdência, Saúde, Assistência e Seguro-Desemprego. Entre 1988/2010 seus beneficiários (transferência de renda) saltaram de 8 para 34 milhões, assim distribuídos: INSS urbano (16 milhões) e rural (8); assistência social (3,6) e seguro-desemprego (6,4). Para cada beneficiário direto, há 2,2 membros da família: assim, são beneficiados, direta e indiretamente, cerca de 100 milhões de pessoas, mais da metade da população. Sendo que 75% desses benefícios equivalem ao salário mínimo, cuja expressiva recuperação ampliou a renda transferida. Aqui está um dos principais núcleos da força do mercado interno, motor da economia nos últimos anos.
 Tensões entre paradigmas
Em 1990 o Brasil fez sua opção tardia pelo neoliberalismo. A agenda do Estado Mínimo ganhou hegemonia e foi abraçada por diversos especialistas. Nessa visão, a “erradicação” da pobreza prescinde ao crescimento econômico, à reposição do salário mínimo e, sobretudo, às políticas sociais universais.  A estratégia encerra-se numa única ação: focalização nos “mais pobres dentre os pobres”.
E aqui temos uma questão crucial: como demarcar essa linha de pobreza? Seria o patamar do salário mínimo (R$ 510)? O rendimento necessário para o trabalhador cobrir despesas básicas calculado pelo Dieese (R$ 2.227)? A linha adotada, pelos EUA, de US$ 22.050 anuais para uma família de quatro indivíduos (per capita de US$ 459 por mês e US$ 15 por dia)? O padrão seguido na OCDE (quem recebe menos de 60% da média do rendimento por adulto equivalente de cada país)?
Optaram por considerar o critério restritivo do Banco Mundial: pobre é quem recebe até US$ 2 por dia, e miserável é quem recebe US$ 1. Assim, no Brasil, pobre é quem recebe até cerca de R$ 4 por dia. Podem tomar duas coca-colas de lata. Ou ainda pagar a passagem de ida de um ônibus municipal. Observe que, segundo o DIEESE, em dezembro de 2010, o custo da cesta básica de alimentos em 17 capitais pesquisadas variava entre R$ 175 (Aracajú) e R$ 265 (São Paulo).
Mais paradoxal é que essa definição é uniforme para todos os países. Desconsideram as distintas realidades. Note-se que, em 2010, dentre 400 cidades, o Rio de Janeiro era a 29a cidade mais cara, à frente de Londres (78a) (Bussiness Week). Hoje, por mês, o paulistano paga de ônibus R$ 134, o mesmo que um parisiense (Leandro Begouci, IG, 5/1/2011).
Com base nos critérios do Bird, nossa linha de pobreza foi fixada em R$ 120. O mais grave é a implicação de que as políticas universais – que beneficiam os “não pobres” – devem ser destruídas. O seguro-desemprego, por ex., seria um privilégio, dado que é apropriado pela “elite dos trabalhadores”, aqueles que possuem carteira de trabalho. Portanto, todos os programas universais (exceto educação fundamental) devem ser desmontados e seus recursos realocados para os pobres.
O real objetivo dessa agenda é o ajuste fiscal. Ações de transferência de renda são relativamente baratas: o gasto anual do Bolsa Família (0,4% do PIB) é muito inferior ao da Previdência (7,5%). Esta razão move a ortodoxia em torno da “opção pelos pobres”.
Assim, foi somente em 1988 que o Brasil incorporou o paradigma do Estado de Bem-estar, mas estava na contramão do movimento global. Nossas conquistas sociais passaram a viver sob fogo cruzado. Entre 1990/2010, a proteção social viveu tensões entre dois paradigmas opostos, com especificidades em quatro momentos:
• Contrarreforma truncada  (1990/1992) – O curto governo Collor foi marcado pela formulação de uma nova agenda de reformas, visando a revisão constitucional prevista para 1993, momento esperado para enterrar a “anacrônica” Constituição. Todavia, os sonhos dos contrarreformistas foram frustrados pelo impeachment. Enquanto preparava a revisão constitucional – que acabou não ocorrendo –, a estratégia do governo visava obstruir ou desfigurar a legislação constitucional complementar.
• Retomada das reformas liberalizantes (1993-2002) – Com a gestão de Fernando Henrique Cardoso no ministério da Fazenda (1993), o contrarreformismo foi retomado e, posteriormente, intensificado nos seus dois mandatos. Nessa etapa houve profunda antinomia entre a estratégia macroeconômica e o desenvolvimento social. Primeiro, pela desorganização do mundo do trabalho, fruto da estagnação econômica. Segundo, pela restrição ao financiamento do gasto social: altas taxas de juros duplicaram a relação dívida/PIB (de 30% para 57%). Esse é o pano de fundo para compreender a desestruturação do mercado de trabalho e o retrocesso da reforma agrária e dos direitos trabalhistas e previdenciários; a ausência de política de habitação popular; a opção pela privatização do saneamento e do transporte público; e o paradoxo das políticas de saúde, assistência social e educação fundamental, nas quais os inegáveis avanços institucionais foram minados pela macroeconomia. A focalização ganhou vigor, sobretudo após o acordo com o FMI (1998).
• Mudança ou continuidade (2003/05)? – A terceira etapa é marcada pela ambiguidade entre a ruptura e a continuidade. A continuidade na gestão econômica teve consequências nos rumos tensionados da política social. Conviviam no seio do próprio governo forças defensoras do Estado Mínimo – aglutinadas, sobretudo, na área econômica – e setores que defendiam os direitos universais.
• Crise do neoliberalismo e ensaios desenvolvimentistas (2006/2010) – Neste período ocorreram dois fatos relevantes. O colapso financeiro internacional (2008) interrompeu a hegemonia neoliberal e o “Estado Mínimo” perdeu força.  Além disso, o crescimento econômico voltou a ter destaque na agenda, o que não se via há 25 anos. A despeito da postura conservadora do Banco Central, houve uma inflexão positiva nas posições do Ministério da Fazenda, da Casa Civil e dos Bancos Públicos. A melhoria do mundo do trabalho e das contas públicas abriu espaço para o gasto social. A tensão entre os paradigmas arrefeceu.
Nova estratégia de desenvolvimento social
Essas inflexões após 2006 ofereceram oportunidade para consolidar uma nova estratégia de proteção baseada no desenvolvimento econômico com estabilidade, distribuição da renda e convergência entre as ações universais e focalizadas.
Convergência que é necessária se considerarmos a pobreza como fenômeno multidimensional. O critério, adotado pelo Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), incluiu indicadores não monetários (saúde, educação, reprodução, nutrição, acesso a serviços de saúde e água potável). O pioneiro Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) evoluiu para Índice de Pobreza Humana (IPH/2007) e para Índice de Pobreza Multidimensional (IPM/2010).
Essa inflexão foi influenciada por autores como Amartya Sen (1999), que identifica a pobreza como “privação de capacidades” (como desemprego, doença, baixo nível de instrução e inclusão social). Na mesma perspectiva, Narayan (2000) pesquisou a opinião dos pobres sobre o significado da pobreza, resumida a seguir:
“Pobreza é fome, é falta de abrigo. Pobreza é estar doente e não poder ir ao médico. Pobreza é não poder ir à escola e não saber ler. Pobreza é não ter emprego, é temer o futuro, é viver um dia de cada vez. Pobreza é perder um filho para uma doença trazida pela água não tratada. Pobreza é falta de poder, falta de representação e liberdade.” (Apud, Crespo e Gurovitz, 2002:11). 
 Nessa perspectiva, “erradicar a pobreza” requer transferência monetária, mas também emprego, saúde, moradia, educação, nutrição, saneamento e transporte. Assim, além do programa Bolsa Família, a nova estratégia de desenvolvimento social, cujos núcleos são apresentados a seguir, requer políticas universais e crescimento econômico.
 • Crescimento econômico, emprego e renda – A principal política social é o crescimento por seus impactos no mundo do trabalho. O pleno emprego é a mais eficaz das ações visando a inclusão.
Observe-se que entre 1980 e 2005 a pobreza na China – medida pelo precário indicador do Bird – caiu de 57% para 12% da população total, fruto da taxa média anual de crescimento do PIB de 9%.
No Brasil, o período em que houve maior redução da pobreza foi durante o “milagre econômico” (1968/1973). O crescimento recente criou mais de 14 milhões de empregos formais. Entre 2002/2010, o desemprego caiu de 12% para 5,7% e o rendimento das pessoas ocupadas aumentou 35% em termos reais. Aqui está o núcleo da melhoria da situação social. Todavia, o crescimento é necessário, mas insuficiente. O desenvolvimento social exige ações específicas voltadas para esse objetivo.
 • Políticas sociais universais clássicas – Primeiro, requer ações específicas nas áreas consagradas do Welfare: saúde, educação, previdência, assistência e seguro-desemprego.
O maior desafio é o de restabelecer bases de financiamento sustentáveis, o que requer medidas tais como: extinção da desvinculação das receitas da União, reforma tributária progressiva; aplicação integral dos recursos do orçamento da Seguridade Social na Seguridade Social, flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal, assegurar bases sustentadas de financiamento do SUS, com a regulamentação da Emenda Constitucional 29 e o restabelecimento da CPMF, e ampliar o gasto público com educação, reduzido em comparações internacionais.
• Políticas urbanas – Segundo, precisamos enfrentar as deficiências crônicas na infraestrutura urbana. Nos últimos 20 anos percebe-se a ausência de políticas nacionais de habitação popular, saneamento e transporte público. As ações na habitação popular não chegam às famílias com rendimento mensal per capita inferior a três salários mínimos (80% das famílias estão nessa faixa). Metade da população urbana não tem seus domicílios ligados à rede de esgoto e apenas 20% dos municípios tratam o esgoto coletado. No transporte público, seguimos a rota inversa da experiência internacional, onde o sistema se baseia na preponderância do transporte coletivo sobre o individual; e dentre o transporte coletivo, prevalece a oferta de metrô e trens metropolitanos sobre a de ônibus.
• Reforma agrária – Terceiro, temos ainda vivo o problema da reforma agrária. Este tema deixou de ser questão para os países centrais, que a fizeram em nome da modernização do capitalismo. O Brasil, ao contrário, teve vários ensaios abortados e, aqui, o tema permanece atual.
• Combate à pobreza – Finalmente, a transferência monetária aos mais pobres deve ser um dos eixos da estratégia. Como mencionado, o equívoco é pretender fazer desse eixo a própria estratégia.  Dentre os desafios, destaca-se o encontro de “portas de saída” pela maior articulação do programa Bolsa família com as ações de capacitação, microcrédito e economia solidária. Mais complexo é definir a linha de pobreza.
A presidenta pretende “erradicar a pobreza”. Falta definir qual critério adotará: a visão da pobreza como fenômeno multidimensional ou o critério restritivo do Bird? Qual será a escolha de Dilma?
Eduardo Fagnani
é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).
1 Amartya Sen (1999:11).
Bibliografia
CRESPO, A. P. e GUROVITZ, E. (2002) A pobreza como fenômeno multidimensional. RAP, SP: FGV.
FAGNANI, E. (2005). A política social no Brasil (1964/1982) – Entre a cidadania e a caridade. Campinas: Instituto de Economia da Unicamp (doutorado). 
NARAYAN, D. (2000) Voices of the poor – Can anyone hear us? Washington, DC. Bird: Oxford University Press.
SEN, A. (1999). Desenvolvimento como liberdade. SP: Companhia das Letras.

Obama USA os padrões tradicionais no Egito

Chomsky: EUA estão seguindo seu velho manual no Egito

Em entrevista a Amy Goodman, do Democracy Now, o linguista e professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Noam Chomsky, analisa o desenrolar dos protestos no Egito e o comportamento do governo dos Estados Unidos diante deles. Na sua avaliação, o governo Obama está seguindo o manual tradicional de Washington nestas situações.

Nas últimas semanas, os levantes populares ocorridos no mundo árabe provocaram a destituição do ditador Zine El Abidine Bem Ali, o iminente fim do regime do presidente egípcio Hosni Mubarak, a nomeação de um novo governo na Jordânia e a promessa do ditador de tantos anos do Iêmen de abandonar o cargo ao final de seu mandato.
Leia também:
Noam Chomsky fala nesta entrevista sobre o que isso significa para o futuro do Oriente Médio e da política externa dos EUA na região. Indagado sobre os recentes comentários do presidente Obama sobre Mubarak, Chomsky disse: “Obama foi muito cuidadoso para não dizer nada; está fazendo o que os líderes estadunidenses fazem habitualmente quando um de seus ditadores favoritos têm problemas, tentam apoiá-lo até o final. Se a situação chega a um ponto insustentável, mudam de lado”. Veja abaixo a entrevista completa.

Democracy Now: Qual é sua análise sobre o que está acontecendo e como pode repercutir no Oriente Médio?Noam Chomsky: Em primeiro lugar, o que está ocorrendo é espetacular. A coragem, a determinação e o compromisso dos manifestantes merecem destaque, E, aconteça o que aconteça, estes são momentos que não serão esquecidos e que seguramente terão consequências a posteriori: constrangeram a polícia, tomaram a praça Tahrir e permaneceram ali apesar dos grupos mafiosos de Mubarak.

O governo organizou esses bandos para tratar de expulsar os manifestantes ou para gerar uma situação na qual o exército pode dizer que teve que intervir para restaurar a ordem e depois, talvez, instaurar algum governo militar. É muito difícil prever o que vai acontecer.

Os Estados Unidos estão seguindo seu manual habitual. Não é a primeira vez que um ditador “próximo” perde o controle ou está em risco de perdê-lo. Há uma rotina padrão nestes casos: seguir apoiando o tempo que for possível e se ele se tornar insustentável – especialmente se o exército mudar de lado – dar um giro de 180 graus e dizer que sempre estiveram do lado do povo, apagar o passado e depois fazer todas as manobras necessárias para restaurar o velho sistema, mas com um novo nome.

Presumo que é isso que está ocorrendo agora. Estão vendo se Mubarak pode ficar. Se não aguentar, colocarão em prática o manual.

Democracy Now: Qual sua opinião sobre o apelo de Obama para que se inicie a transição no Egito?
Noam Chomsky: Curiosamente, Obama não disse nada. Mubarak também estaria de acordo com a necessidade de haver uma transição ordenada. Um novo gabinete, alguns arranjos menores na ordem constitucional, isso não é nada. Está fazendo o que os líderes norteamericanos geralmente fazem.

Os Estados Unidos têm um poder constrangedor neste caso. O Egito é o segundo país que mais recebe ajuda militar e econômica de Washington. Israel é o primeiro. O mesmo Obama já se mostrou muito favorável a Mubarak. No famoso discurso do Cairo, o presidente estadunidense disse: “Mubarak é um bom homem. Ele fez coisas boas. Manteve a estabilidade. Seguiremos o apoiando porque é um amigo”.

Mubarak é um dos ditadores mais brutais do mundo. Não sei como, depois disso, alguém pode seguir levando a sério os comentários de Obama sobre os direitos humanos. Mas o apoio tem sido muito grande. Os aviões que estão sobrevoando a praça Tahrir são, certamente, estadunidenses.

Os EUA representam o principal sustentáculo do regime egípcio. Não é como na Tunísia, onde o principal apoio era da França. Os EUA são os principais culpados no Egito, junto com Israel e a Arábia Saudita. Foram estes países que prestaram apoio ao regime de Mubarak. De fato, os israelenses estavam furiosos porque Obama não sustentou mais firmemente seu amigo Mubarak.

Democracy Now: O que significam todas essas revoltas no mundo árabe?Noam Chomsky: Este é o levante regional mais surpreendente do qual tenho memória. Às vezes fazem comparações com o que ocorreu no leste europeu, mas não é comparável. Ninguém sabe quais serão as consequências desses levantes.

Os problemas pelos quais os manifestantes protestam vem de longa data e não serão resolvidos facilmente. Há uma grande pobreza, repressão, falta de democracia e também de desenvolvimento. O Egito e outros países da região recém passaram pelo período neoliberal, que trouxe crescimento nos papéis junto com as consequências habituais: uma alta concentração da riqueza e dos privilégios, um empobrecimento e uma paralisia da maioria da população. E isso não se muda facilmente.

Democracy Now: Você crê que há alguma relação direta entre esses levantes e os vazamentos de Wikileaks?
Noam Chomsky: Na verdade, a questão é que Wikileaks não nos disse nada novo. Nos deu a confirmação para nossas razoáveis conjecturas.

Democracy Now: O que acontecerá com a Jordânia?Noam Chomsky: Na Jordânia, recém mudaram o primeiro ministro. Ele foi substituído por um ex-general que parece ser moderadamente popular, ou ao menos não é tão odiado pela população. Mas essencialmente não mudou nada.

Fonte: Carta Maior
Tradução: Katarina Peixoto



manifestações populares no norte da áfrica

MUNDO ÁRABE
O levante vitorioso na Tunísia
Imprevisível, sem uma real liderança política, unidos pela internet num tipo de comunicação que o regime não previra. Os trunfos do levante mostram agora sua debilidade: ausência de liderança, programa político ou capacidade de dirigir a sociedade após a derrocada de Ben Ali.
por El Alaoui Hicham Ben Abdallah
Os tunisianos derrubaram um regime despótico que se tornara uma cleptocracia – sistema baseado no roubo e na corrupção – e uma autocracia repressores. O poder estava encarnado numa família que havia pilhado a sociedade tunisiana. A imolação de um jovem bacharel desesperado, que vendia frutas e legumes em sua carroça, desencadeou uma revolta que venceu a resistência de um dos regimes mais repressivos do mundo árabe. No entanto, a região é fértil em ditaduras.

Esse levante heroico de um grande povo tem o valor de exemplo. Imprevisível, sem uma real liderança política, a revolta beneficiou-se de seu caráter não estruturado. Caso o tivesse tido, talvez o regime a tivesse esmagado. Unidos tão somente pela lógica do “Basta!” contra a autocracia de Zine el-Abidine Ben Ali, os insurgentes mantiveram contato pela internet, num tipo de comunicação que o regime não previra (apesar do Movimento Verde no Irã, controlado em 2009 pela teocracia no poder). Em menos de um mês, a revolta conseguiu derrubar essa ditadura que fez da Tunísia um dos regimes mais fechados da África do Norte e do Oriente Médio durante mais de um quarto de século.

Os trunfos de tal levante constituem agora sua principal debilidade: ausência de uma liderança, de um programa político ou da capacidade de dirigir a sociedade após a derrocada do presidente proscrito.

O país, que tem uma das populações mais instruídas e secularizadas do mundo árabe, soube evitar, até agora, que os islâmicos radicais obtivessem uma real preeminência. O que se delineia no horizonte não parece prognosticar a estes últimos o ensejo de tomar o poder pela violência. Assim sendo, se uma parte dos islâmicos (como o movimento Nahda1) aceita o jogo democrático, caberá integrá-los no sistema político para marginalizar os islâmicos radicais de maneira mais eficaz.

O sentimento de incerteza, palpável após a queda e a fuga de Ben Ali, resulta da ausência de uma elite política autônoma capaz de assegurar a alternância de poder e a transição para um regime democrático; só subsistiu a elite do regime deposto, partidos políticos embrionários e sindicatos operários acéfalos. Se o receio do caos, a confiança na capacidade de autogestão da sociedade e o realismo político prevalecerem, poderão emergir estruturas políticas. A juventude servirá de trunfo a uma sociedade em busca da democracia, que conseguiu sair de uma ditadura sem sofrer irreparáveis perdas humanas.

Com a aproximação da primeira eleição fundadora, os novos dirigentes contarão novamente com o medo do islamismo para fazer com que os governos ocidentais aceitem um questionamento da soberania popular? No movimento, a rua assusta os novos detentores do poder. Por receio de levantes violentos, tanto como para preservar uma parte do poder do presidente deposto, o regime de transição poderia tentar preservar certo status quo. Ao convocar eleições num breve lapso de tempo, corre-se o risco de reforçar o peso das elites ilegítimas, que se reagrupariam para usurpar a bandeira da renovação.
O esquema é clássico. Foi o que ocorreu no início dos anos 90 na Bulgária e na Romênia, onde o antigo regime opera a junção com as antigas elites a fim de ressuscitar sob nova aparência. O caso da Ucrânia é ainda mais expressivo: a ruptura é mais acentuada (com o surgimento de um novo Estado), mas os antigos quadros políticos voltaram à cena tão logo o tumulto se apaziguou. O fio condutor de todas essas situações é o fato de que o povo se mobiliza contra autoridades odiadas, cuja derrocada acalma imediatamente a pressão popular. Eis aí o principal problema que prejudica qualquer transição onde a sociedade civil é pouco organizada.
O levante de janeiro na Tunísia, no entanto, fez crescer a esperança em outras populações árabes. A experiência da emancipação contagiou, ao mesmo tempo, a Argélia, o Egito, a Jordânia, o Marrocos, a Síria e até mesmo a Palestina. Por toda parte, novas gerações, cansadas de sistemas autoritários, anseiam por se libertar. Mas, justamente por ser imprevisível, a experiência tunisiana não poderá reproduzir-se de forma idêntica no restante do mundo árabe.

Na Tunísia, o exército estava relativamente alijado dos serviços de informação e de repressão – inclusive da polícia. Frequentemente mal pagos, com exceção da guarda presidencial, esses serviços conseguiam controlar revoltas circunscritas, sufocando no útero os atos de insubmissão. Mas eles não sabiam como acabar com revoltas pouco organizadas e que abrangiam numerosas camadas sociais.

Ao contrário do que ocorre na Argélia, onde a ditadura é formada por um órgão colegiado – e não concentrada nas mãos de uma única pessoa –, mas similar à do Egito, onde o Rais concentra os ódios e os rancores, a ditadura tunisiana oferecia um alvo fácil à execração pública. O envolvimento da quase totalidade da família Ben Ali no saque do país acentuava ainda mais o fenômeno. As ditaduras difusas são mais difíceis de ser depostas que aquelas que oferecem um rosto definido para o ressentimento popular, como no caso do xá do Irã ou de Suharto, na Indonésia, para mencionar apenas esses exemplos notórios. Além disso, as coalizões oligárquicas dispõem de base mais ampla que as ditaduras personalizadas: elas são, portanto, menos frágeis. Os sistemas autoritários mostram-se mais resistentes, à medida  que concedem uma parcela de poder ao povo e, principalmente, a diferentes grupos de interesse. Comparados à Tunísia, os poderes marroquino e argelino fizeram nascer redes de interesses bem mais amplas e complexas ligadas a eles. No caso da Argélia, a renda petroleira galvaniza um corpo político diretamente interessado na manutenção do regime.

O sistema tunisiano caracterizava-se também por transformar as consultas eleitorais em plebiscitos fúnebres (99,27% dos votos em 1989; 99,91% em 1994; 99,45% em 1999; 94,49% em 2004; 89,62% em 2009), não deixando nenhuma margem para a oposição. A cena política era, por assim dizer, inexistente. Tal não é o caso do Egito, onde o sistema eleitoral, claramente submetido à fraude massiva, constitui, no entanto, um campo de contestação e confronto. Além disso, a imprensa nesse país não foi amordaçada na mesma medida que na Tunísia.
FRAQUEZA DA SOCIEDADE CIVIL
Nem na Argélia, onde, em última instância, a renda petroleira permite postergar uma radicalização da cólera popular, pelo menos enquanto a hierarquia militar se mantiver unida, pouco visível na cena política e capaz de integrar – através da submissão – uma parte dos atores políticos que aceitem o jogo da cooptação. Saída de uma guerra civil de mais de uma década, a Argélia encontra-se debilitada e pouco disposta a se levantar contra um regime que triunfou sobre o islamismo radical ao custo de uma centena de milhares de mortos.
Ainda resta o Marrocos onde, até o momento, a ira popular não elegeu a monarquia como alvo. Mas uma juventude frustrada pela falta de perspectivas, por um jogo político entrevado por um aparato de segurança coercitivo e por redes clientelistas massacrantes pode encontrar motivo para uma revolta, que poderia se radicalizar, tendo em conta a complexidade do país. De fato, as divisões étnicas nesse país são mais numerosas e mais profundas, com um processo de homogeneização menos avançado.

Em todos esses países, um modelo de desenvolvimento pouco dinâmico e profundamente desigual, marcado pelo clientelismo do aparelho de Estado, um estreito controle da população e a ausência de abertura da cena política fazem com que os regimes sejam frequentemente “fortes” em função da fraqueza da sociedade civil. Mas, ao se revelar a menor falha em sua couraça, uma parte da contestação aí se precipita e toda a estrutura ameaça desabar.
No caso tunisiano, foi precisamente o caráter carcomido de um regime acuado e ilegítimo que galvanizou a revolta popular. Um fruto maduro pronto para cair? O poder de Ben Ali era tido, no entanto, como um dos mais sólidos e estáveis da região. A fissura era invisível e era impensável o que estava por vir.

Os outros regimes não são tão frágeis assim, nem sequer no mesmo nível. Sua longevidade faz deles, no entanto, presas fáceis para movimentos que hoje mal conseguimos vislumbrar, mas que parecerão, a posteriori, tão ineludíveis quanto aquele que pôs de joelhos o regime tunisiano. A facilidade com que a ditadura de Ben Ali sucumbiu aos ataques da juventude é uma prova da incapacidade dos aparatos de repressão de eliminar os movimentos impetuosos, surgidos não se sabe de onde.

As disparidades de desenvolvimento entre as diferentes regiões do país favoreceram a revolta tunisiana. Foram feitos significativos investimentos nas zonas costeiras para encorajar o turismo, mas as regiões do interior foram abandonadas à própria sorte. Foi justamente onde surgiu o movimento que derrubou o regime. Em outros países árabes, essa disparidade também existe, evidentemente, mas de outra forma. Uma sociedade cujo sistema político é dominado por um grupo muito restrito e sem legitimidade não poderia, de fato, desenvolver-se racionalmente sem a autonomia de uma tecnocracia que atue emulando o modelo chinês. O que ocorre é que a maioria dos países árabes sacrifica sua tecnocracia no altar da corrupção e do autoritarismo.
INFLUÊNCIAS
“Trabendistas” e jovens inquietos, em geral diplomados, povoam as ruas por onde se esquivam: “hittistas”2 com vocação para aderir ao islamismo ou, simplesmente, vítimas de um sistema que não lhes permite viver dignamente? Ou seu desespero se expressa como no Egito ou na Argélia (mas, sem conseguir fazer mudar as coisas, termina por morrer em fogo lento) ou então se manifesta na forma de um ressentimento contido (como na Jordânia e no Marrocos). Frequentemente, sem se darem conta, os regimes erigem sua estabilidade sobre a apatia de uma sociedade que não consegue nem sequer se revoltar. Quando a cólera explode, ela só pode ser cega e violenta.

À medida que o desespero dos jovens não chega a se associar a um fato suscetível de agravar a situação, esses regimes se mantêm incólumes. Mas basta um fato um tanto circunscrito, como a imolação de um jovem, para que toda a sociedade engrosse as fileiras da revolta, de início local e regional, e que o regime sucumba na ignomínia, numa velocidade que desafia a compreensão.
A influência do movimento tunisiano no restante do mundo árabe dependerá de sua capacidade de democratizar o país. Se a democracia se organizar, testemunharemos de fato sua difusão, especialmente no Magreb. As reivindicações populares se acentuarão e, ao fim e ao cabo, com a exigência de pluralismo e participação. Caso fracasse, os regimes autoritários sentir-se-ão encorajados, para desespero das populações: a maioria dos regimes árabes prefere, sem dúvida, a segunda opção, mesmo que ela conduza ao caos.
Pode-se imaginar dois cenários: num primeiro caso, os regimes árabes ouvem as reivindicações de seus povos e começam a se abrir politicamente; num segundo caso, eles tentam por todos os meios preservar seu poder sem ceder às demandas de participação política colocadas pelos cidadãos.

Na primeira hipótese, o caminho será pleno de dificuldades. Após várias décadas de fechamento e repressão, os regimes árabes devem, de fato, se abrir gradualmente, para evitar um choque frontal que poderia levar à sua derrocada. Levando em consideração as esperanças frustradas da população, seria preciso que sua abertura democrática fosse suficientemente ampla para não ser vista como engodo, e que fosse suficientemente progressiva para não conduzir o sistema político rumo às tormentas revolucionárias. Mas, na realidade, a mudança gradual só será possível com tato e o concurso de uma elite política que não sacrifique nem a estabilidade nem a premência da democratização. A capacidade dos regimes constituídos de instar tal elite e lhe conferir o poder necessário para que ela cumpra sua missão de abertura nos deixa céticos.

Resta a solução do fechamento político. Alertados pelo que ocorreu na Tunísia, os regimes autoritários árabes buscam neutralizar as causas imediatas da revolta, lutando especialmente contra a alta dos gêneros de primeira necessidade (pão, açúcar, carne, ovos etc.). A seguir, eles enviarão esforços para aumentar a eficiência de seus serviços de segurança e informação.

O exemplo tunisiano demonstra que ocorreu uma falha no sistema de comunicação, tendo a internet servido de refúgio aos oposicionistas que se comunicaram por meio do YouTube, Twitter, Facebook etc. O sistema de repressão tunisiano também apresentou uma frágil cooperação em seus diversos níveis (polícia, serviços de informação e exército). Inspirando-se então no modelo iraniano de aniquilação dos movimentos sociais, os regimes árabes aprendem a censurar a internet e a colocá-la fora de combate em caso de necessidade. Em casos extremos, eles expulsam ou confinam os jornalistas estrangeiros. No modelo de Bassidje3, no Irã, eles tentam sufocar as revoltas urbanas, dividindo os diferentes bairros e estabelecendo cabeças de ponte suscetíveis de intervir localmente. Em suma, veríamos nesse caso uma “modernização” e uma “extensão” dos serviços de repressão. Mas tais paliativos não constituem prevenção contra os novos tipos de ação coletiva que os próximos movimentos sociais podem inventar. As soluções repressivas somente servirão, no melhor dos casos, em curto prazo.

Se o Movimento Verde no Irã gozou de uma significativa simpatia no Ocidente, não foi esse o caso do levante tunisiano. Este chegou mesmo a suscitar reações toscas e totalmente inapropriadas. Particularmente na França, país que, até o fim, permaneceu fiel à ditadura de Ben Ali. As outras capitais ocidentais, entre as quais Washington, adotaram um discurso de apoio relutante às revoltas. Pode-se mesmo dizer que o Ocidente não demonstra entusiasmo com relação à democracia no mundo árabe, apesar de uma retórica por vezes inflamada. O movimento tunisiano poderia ser a ocasião de mudar de comportamento, especialmente em Paris.

No mundo árabe, que vê a conivência com as ditaduras como a continuação da colonização e do imperialismo por outras vias, o apoio à democratização é, ao contrário, percebido como uma prova de respeito pelas sociedades reprimidas por regimes ilegítimos. Se, por receio do islamismo radical ou por interesse, o Ocidente se obstinar em não auxiliar esse tipo de movimento democrático, ele poderia, pelo menos, manter-se numa neutralidade condescendente.
El Alaoui Hicham Ben Abdallah
é pesquisador no Instituto de Estudo Político de Aix-en-Provence, ligado ao Instituto de Pesquisas e de Estudos sobre o Mundo Árabe e Muçulmano (IREMAM).

1 Movimento de renascimento cultural e político surgido no final do século XIX. Mescla a vontade de reformar o Islã e de transformar a sociedade. Ler Anne-Laure Dupont, “Nahda, a renascença árabe”, Manière de voir n° 106, agosto-setembro 2009.
2 Hittista (de hitt, parede em árabe): desempregado que passa o dia encostado a uma parede.
3 Os jovens voluntários do exército dos pasdarans (corpo de guardas da revolução islâmica).